quinta-feira, 23 de abril de 2009

Música para sair de um filme

Acorda.
Acorda.
Acorda.
Não consigo ouvir mais isto. Acordamos os dois, hoje.
Levantas-te. Agarras uma mala grande verde e abres o armário como se janelas fossem. Conheço o teu corpo tão bem. Os teus braços abertos, Júlia, são um convite. Para mais fundo. E só eu sei isso.
Conheço os teu lábios suaves. As costas nuas que vejo entre as portas que abres, lembro-me de beijá-las. Saio dos teus lábios, beijo-te as costas e sinto saudades dos teus lábios. E se volto para eles, saudades das tuas costas. É o que me fazes, esta raiva de desejo. E então abraço-te. Tento incluir-te toda. Sinto-te as costas.
Desço.
Chego às tuas ancas e subo.
Passo os teus seios e toco-te os lábios e és suave.
Toda tu.

Acordada agora. Eu sentado, vejo-te preencher a mala de vestidos. Saias. T-shirts tops e coisas. Depois tiras, à pressa. Percebes que não tens mais espaço mas precisas para livros e sapatos e a escova de dentes. Os tecidos dobrados com cuidado agora voam a sair da tua mala. e tu sais. entras na casa de banho e eu vejo o teu reflexo. Lembro-me de uma quinta feira. Como hoje.

A manhã tentava cair, como a noite faz. A noite cai facilmente. É isso que ela faz. À manhã é mais dificil. Mas se alguma vez o fez, foi nesta quinta feira. Eu dizia-te.
-Júlia.
-Sim amor?
-Eu gosto das tuas borbulhas.
-Estás a dizer que tenho borbulhas é?
-Concerteza, mas são pouquinhas, e eu gosto delas.
-Eu sei estava só a tentar fazer-te sentir mal.

Sorris.

-Eu sei. E eu estava a ignorar-te.

Ris-te. Eu agarro-te o nariz. Eu gosto de te fazer isso. Ficas com um ar atrapalhado.

-Mas gosto das tuas borbulhas, gosto muito. De uni-las como pontos.
-Isso é um sinal.
-E não posso unir?
-Não não. Sinais só com sinais.
-Ah, está bem.
Viras a cara, deitada, fechas os olhos. Passa o tempo e eu digo-te
-Acorda.
Digo
-Acorda.
e não sei porque não te deixo dormir. Continuo digo
-Acorda.
-Amor?
Saiste da casa de banho. Olhas para mim enquanto pões um brinco. O outro está posto. Enquadram a tua face.
-Estava a pensar alto.
-Despacha-te então. Temos pressa.
Visto-me rápido. Acabo e tu ainda estás a arrumar coisas, eu fiz a minha mala no dia anterior. Saio do quarto, agarro-te a mão. Olho-te nos olhos, tens medo. Eu também. Se calhar estou-me a ver a mim mesmo. Se calhar isso é estúpido. Se calhar ninguém vê nada nos olhos. Não sei. Tenho de acordar.
Dou a chave do quarto a um senhor de barba por fazer que lava o chão do corredor. Por entre papel de parede antigo e lâmpadas que imitam velas caminhamos, descemos escadas, viramos em esquinas. Tudo parece mais longo. À porta está um polícia que que põe a mão no vidro da porta à procura. E um senhor, o teu pai. Tu assustas-te. Escondes a cabeça no meu peito por segundos, susurro-te algo. Não sei o quê. Mas afastamo-nos.

Eles entram.
Nós corremos.
Escondemo-nos num quarto. Fecho a porta por dentro e oiço gente que bate.
-Júlia? Júlia estás aí? Abre a porta querida.
Eu respondo-lhe.
-Um dia vocês vão sufocar.
Ambos olhamos para a porta, de mão dadas.
-Um dia vocês vão sufocar.
e eu abraço-te digo-te que te amo. Passo-te a mão pelas costas até às ancas. Sobe pelos seios até aos lábios. Olhamos pela janela, ainda é alto. Eu tenho medo. Agora já não te consigo ver. Digo-te
-Julia.
-Romeu.
Saltamos. Terminas deitada na estrada. Eu a teu lado. Um carro pára. Pessoas aproximam-se. O teu corpo está torcido. Ossos quebrados e gostava de ainda te poder passar a mão pelo corpo. Digo-te
-Acorda.
-Acorda.
-Acorda.