domingo, 15 de novembro de 2009

All I need. (Seja o que deus quiser)

Eu não quero escrever ficção.

Eu não quero mentir sobre ti.

Não é que sejas má rapariga. Eu gosto de mentir sobre boas raparigas. Mentir que elas são más. Não que sejas má. Enfim. Explico:

Agora apenas penso a sério nesta altura. Quando é noite e as folhas estão molhadas no chão. Sentes uma tempestade na espinha. Sentes-te teatral, pela escuridão. Mas não é por aí. É apenas um alívio, de conseguir pensar. E hoje é em ti: Não te amei. Mentira, amei-te: não te comi. Ou não te amei: não te amei no chão, nem no balcão da cozinha nem de costas contra a parede.

Mas penso que sim. Portanto não minto. Está explicado?

Tinhas cara de puta. Ninguém percebia isso, eu disse aos meus amigos
- E a Carla, não achas que tem um bocado cara de puta?
-Fogo, não. Por que raio?
-Eu acho tanto.
-A rapariga nunca dormiu com ninguém!
-Como é que sabes?
-Não perguntes. Um sexto sentido.
-Deve dar jeito.
Mas tinhas, tinhas pois.

Em sépia via-te, no banco de trás do meu carro. O teu cabelo Castanho escuro e o batom vermelho. Close up do teu batom vermelho e um sorriso, largo e depois encolhes os lábios numa vergonha falsa. Os olhos com rímel que parecem um pouco mais pequenos, um pouco mais claros. Mas nada parece incrível, tirando a forma como ondulas. Como enganas ou outros, que te acham santa, mas para mim és um animal.

No banco de trás do meu carro és um animal. Pedes
-Põe uma música sexy para mim bebé.
-hum. Algo de que género?
-Põe o cd de radiohead que tens aí. A all i need.
-Isso não é sexy, desculpa.
-Oh, para mim bebé?

Está demasiado obsceno, desculpa. Obsceno estranho, mas obsceno. Vou tentar acalmar.

-Eu gosto muito da música. Lembra-me de ti.
-Ponho, claro linda.
-Vem.
Eu vou, trepo o banco da frente e tu deitas-me, montas-me como um animal e não me beijas. As memórias, as mentiras, estão difusas. Mas eram sim, os teus lábios vermelhos. As tuas mãos a desapertarem com cuidado os botões da camisa branca e o teu busto a acontecer. Num soutien branco que na noite me dava a tua pele, me dava o decote, o meu desejo desavergonhado. Eu gemia de te ver, animal e tu era animal também. Bebias o meu desejo e sorrias, divertia-te a minha necessidade.

15/11/2009

Porque te vejo assim? Entretanto olhas-me enquanto faca. Entretanto olhas-me enquanto dor mas dóis mais. Onde estás? As minhas mentiras de ti, não sei para que serviram.

Era noite e as folhas estavam molhadas. Isto lembro-me bem, acho eu. Os teus olhos quando te foste embora. Não sei se me reconhecias. Foi no carro mas não havia tons sépias, não havia batom vermelho. Disseste

-Obrigado por me trazeres a casa.
-De nada Carla.
-Vê-mo-nos por aí.
-Sim

Nos teus traços cinzentos eras tu e pronto. A linha da tua sombrancelha que enrugava um pouco a testa, naquele padrão de pele. Da tua pele.
Na tua cara dizias adeus e foi isso que mais me custou. Estava tão habituado à tua cara de pêga.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Something in the way

na bruma das luzes é nevoeiro, um nevoeiro de fumo de tabaco. Um nevoeiro de suor e música ao fundo. Guitarras de quem não se interessa, guitarras afogadas. Num baixo que de longe ainda se sente no chão de madeira.

E é o ambiente. Em torno de mim é o ambiente. E eu deitado, encostado numa parede com uns panfletos, vejo tremidos de luz. Um homem de cabelo e barbas longas, vestido com um colete branco está no chão imóvel enquanto que uma rapariga de cabelo roxo lhe beija os braços tatuados.

Desencosto-me, coço a cabeça nua e passo as mãos pelos olhos, em gestos desengonçados é o que ainda me sinto capaz. Passo pelos meus lábios secos, paro, suspiro.
É o negro da noite que te consome, nas luzes irrealistas que te atingem. Um vermelho, um roxo, algo confunde. O baixo que permanece e sentes-te falsificado, sentes que é tudo falsificado. A bateria que marca o tempo e palavras sólidas de infelicidade.

Não as do vocalista mas as minhas, as minhas palavras como:
-Ana.
Palavras sólidas de infelicidade, como uma amargura seca na voz, um entrave na garganta
-Sempre gostei de como dizes o meu nome.
-Hum.
-Não sejas assim.
Ela dá-me a mão para me levantar. Eu pauso e aceito.
-Porque estás aqui?
-Eu estou sempre aqui.
-Pois é.
-E tu lembravas-te. Sabes que sim. Sabes porque vieste.
-Não me chateies. Anda lá.
-Ok
Ponho as mãos nos bolsos. Ela tenta segurar-me com um braço mas eu afasto-me.
4 anos disto. Há dois anos que não vinha aqui. Há dois anos que tinha desistido. Ela não me leva mas eu sigo-a. As coisas mudaram um pouco desde a última vez. Já não oiço a guitarra, um pouco o baixo e cada vez menos mas ainda oiço a voz. As palavras sólidas de infelicidade. Entro num corredor que parece vazio. Mas ouvem-se vozes dos quartos onde vamos passando. Gritos. Eu tento não ouvir, tento não ligar. Tento não perceber que são os meus gritos. Na porta há um número.
-3.
-Sim, é este.
É pequeno. Lá dentro há só uma mesa e uma janela fechada com umas tábuas. Ela tira algo da mala. Um tubo com um líquido que põe numa seringa. A seringa reluz e não sei se do vidro se do que está lá contido. Ela injecta-se e treme. Oferece-me. Nos seus olhos há uma queda, uma insegurança que não havia anteriormente. Assusta-me, mas eu não aguento mais. Tomo o que resta.
-Agora tens de esperar um pouco.
-Não aguento.
-Ok. Vamos com calma então.
Afago-lhe os cabelos loiros, o pescoço. Ela estremunha, começa a sentir o efeito. Olha para baixo e depois para mim. Roubo-lhe cabelos penteados para o lado e deito-os sobre a cara. Chegam-lhe aos olhos e são como cortinas. Como cortinas transparentes e ela olha-me nos olhos e eu começo a sentir o efeito. Passo-lhe a mão pelas faces sem cuidado e empurro-a contra mim. Beijo-a com força e relato
-Puta. A tua boca salgada. A tua boca morta.
-Ela ama-te, a minha boca ama-te.
-A tua boca mata-me, a tua boca mata-me por dentro.
-E a tua faz-me esquecer. Faz-me esquecer-te.
-A tua também, essa é a morte.
E trinco-lhe o lábio inferior. Ela tira-me a t-shirt e eu só puxo a dela para cima. Como eu gosto de a sentir vestida, como quem sai da rua e me come. Como quem não aguenta. A ideia de que ela não aguenta.
Eu queria-me esquecer dela. O que ela faz é algo do género. Tira-me as calças, os boxers e a partir daí faz-me esquecer. Passam-me imagens na cabeça a cem kilómetros por hora. Histórias inventadas todas, porque entre nós não há histórias, só estas. Um vampirismo desumano de comer o outro. De, no fim, te alimentares. Um vampirismo, a excitação ampliada de um sentimento que te faz esquecer, de algum modo.
Ela come-me e eu chamo-lhe nomes e ela geme, ela geme só de o fazer. E retribuo com ela já morta, parece injusto. Mas não me interessa, é só a fome. O rosa entre as suas pernas que me faz fome.

sábado, 17 de outubro de 2009

Parallel Lines

Desligo as luzes.

Todas, quase todas. Apenas uma quente, que me permite ver-te. Encontro-te dentro de uma cassete, uma das velhas. Aquelas que vinham pequenas nas câmaras e tinha de se usar um adaptador.



Tinha uma etiqueta horizontal branca, escrita com esferográfica azul.

Verão 2003, África do sul.



No escuro passo a mão pela textura do pedacinho de papel e vejo a tua mão, na luz dos teus cabelos molhados, do teu sorriso suave de praia, e dos olhos castanhos que naquele sol tinham feixes amarelados.

-És uma chata a etiquetar os videos todos e a escrever as datas.

-Oh, depois mais tarde podemos querer ver. Daqui a uns anos vai ter imensa piada.

-Eu sempre me habituei a colidir com as minhas memórias. Inesperadamente. Sem planear.

-És é preguiçoso.

Dali encontrava a praia. Um areal limpo, solitário mas contigo. Encostado no meu carro e tu à minha frente. Arrumaste a câmara e preparavas-te, o teu ritual pós praia. Empurravas os cabelos molhados para dentro de um elástico. Sentavas-te no banco do carro com os pés bamboleando deste lado, no resto do mundo. Via-os amarelados do sol, num bronze bronzeado, com a areia e tu sacudia-la em gestos cuidadosos. Na sombra o resto de ti, dobrada tentando chegar aos pés e no dobrado via a tua marca do bikini deslizar. Via aquilo que tinhas escondido na praia, via o que só eu via. E tentei não parecer demasiado contente, mas tu percebeste e sorriste.

Vejo uma etiqueta horizontal branca, escrita com esferográfica azul. E vejo mais, bastante mais. No entanto parece que estou a observar as memórias mais intímas de outra pessoa. Como encontrar um papel que diz
"Tenho que ir, desculpa. Amar-te-ei sempre."
Não podes evitar sentir o que está escrito apesar de não saberes do que se trata. E quando me lembro de ti.

Em mar ao longe, nas tuas pernas com água salgada como suor, nos teus cabelos apanhados rudes. Selvagem.

Lembro-me de ti como palavras, descrições e motivos pictóricos com um fim. Com o fim de me lembrar de ti. Em memórias cuidadosamente etiquetadas e datadas.

domingo, 23 de agosto de 2009

Le Pere Pinard

-Vai desejar uma sobremesa?
-Não, só um café e a conta. O café em chávena fria se faz favor.
A senhora vai e eu passo a mão pela toalha de papel da mesa, retirando as migalhas. O som áspero e tiro do bolso do casaco um postal que comprei antes. Tem uma imagem do café há uns atrás. Começo a escrever-te, Laura. Escrevo-te no dia vinte um de Junho e digo-te que me lembro. Que ainda me lembro dos teus anos, Que ainda te amo.

Vinte um de Junho.

Neste dia eu venho sempre a um sitio diferente. A um sítio nosso. Comemorar.

Desta vez estou em Maryland, onde passámos o verão de 91. Lembras-te Laura?
Eu lembro-me disto.

Tu num vestido vermelho com bolinhas e o sol a passar pelas folhas das árvores. A tua cabeça no meu colo, deitada. Os teus cabelos castanhos a escorrerem-me pelas pernas. E o sol passando entre as folhas deixava-te luz em manchas pela pele, manchas que mudavam. A brisa suave passava e na tua face calma reflectia-se a luz de verão.
As férias foram longas mas é este dia que me lembro. Deste momento, não sei porquê.
Eu contei-te histórias de como quando era criança brincava naqueles relvados. Brincava e corria e fazia coisas. Rapei o pêlo da cadela da minha avó e depois fiquei com pena e vesti-a com roupas minhas.
Eu contei-te histórias e tu sorriste. Foi das últimas vezes que te vi sorrir assim. Eras feliz. Ou parecias feliz.
Passei por aquela árvore hoje. Sentei-me e imaginei a tua cabeça no meu colo. Imaginei os teus cabelos nas minhas pernas e a tua face calma iluminada em pequenas manchas. Abri os olhos e eram as minhas pernas iluminadas em pequenas manchas.

-A sua factura.
-obrigado.

Laura, vou-me embora agora. Não te vou mandar o postal, hoje pertences a outras pessoas. Vou deixá-lo na árvore onde fomos felizes. Feliz aniversário querida.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Âncora (1)

És tu.

A puxar a gola do casaco, a tapar a boca e o fumo, vapor de água, condensação. O Teu quente contra o mundo frio.

És tu, meu docinho.

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Agora é verão e eu fujo do calor. Fujo para o norte, para as montanhas. Fujo para sítios de calças de ganga e mangas compridas. Fujo para ti.

Não sei se sou importante agora, se sou importante de referir. Mas digo-te: existo enquanto mãos frias, pontas de dedos rosadas e palma escondida à procura do calor nas malhas largas e grossas da camisola. Não sei o que sou: Sou uma dúvida existencial ainda, mas agora sem palavras, uma dúvida e o resto confunde-se-me Duvido até da minha auto caracterização aqui, duvido da possibilidade de uma, duvido da existência de carácter, personalidade, mas nada tenho para o justificar. Tenho uma dúvida e depois canso-me, acabo.
Inspiro.

Não sei o que dizer.

Agora estou cansado sem ti, Laura. Acho que é tudo. Minto: Cansado e frio. Isso és tu, meu amor, meu docinho. Minha Laura.
Estou nas montanhas, na casa onde ficámos há três anos quando nos conhecemos e tenho saudades tuas.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Cry, Cry

Contra o pano preto estás, estática, tentas perceber-te, tentas criar-te da forma mais harmoniosa possível e eu tento despreocupar-te. Com a minha mão envolvo-te a pele, sinto-te a textura mas não muito, não te quero assustar. Envolvo-te a pele, envolvo-te os ombros, puxo-os para a frente, digo
-Clara, não tentes ficar bonita, tenta ficar tu.
-Obrigadinho, ã?
-Não, não percebes.
Sento-me, apanho o lápis e olho-a, ela de joelhos no chão a ver-me, pele só contra o fundo preto.
-Desenhar não tem nada a ver com beleza, não tem nada a ver com amor. Desenhar é sexo.
Ela a olhar-me, desacreditando, achando que a minha metáfora era infundada, uma comparação fundada em intelectualismos,
-É verdade, prometo. Podes discordar, mas não vais.
Levanto-me outra vez, com urgência, aproximo-me e ajoelho-me à frente dele, as calças azuis nos meus joelhos tocam a pele lisa dos joelhos dela. Toco-lhe com o polegar na face.
-Uma vez desenhei uma rapariga, amiga minha. Eu avisei-a, isto mesmo que te avisei a ti. Disse que ia ser desconfortável, ela tinha namorado. Olhar alguém sem vergonha na cara, nos olhos, a tentar percebê-los. Eu perguntei-lhe "é desconfortável, não é?". Ela acenou, envergonhada. É raro conseguires olhar tão fundo nos olhos de alguém quando fodes como quando pintas. É raro estares assim tão confortável. E prometo-te, não sabes o que é seres penetrada antes de seres desenhada. Nunca te sentes tão frágil na vida inteira.
Ela chocada, com a linguagem, com o contexto, com tudo talvez. Desconfortável. Sentei-me comecei a desenhá-la. Já não tentou ser bonita.

Desenhei-a de joelhos como tinha ficado, com um ar assustado. Fiz uns esboços, ela permanecia.
-Desculpa deixei-te mal.
-Não deixaste.
-Deixei.
-Sim.
-Queres ajuda?
-Como?
-Queres um beijo?
-Porquê?
-Eu amo-te sabes, amo-te tanto.
-Tu não me conheces.
-É um requisito?
-Claro.
-Devias ter avisado antes. Agora já está, já te amo.
-Não amas. Amas o quê? Uma noção intelectual de mim?
-Não, pára. pára com isso, não te protejas. Amo-te desprotegida, deitada no chão. De joelhos, mamas a apontar para baixo e um desejo de aprovação que tentas afundar.
-Não tenho desejo de aprovação nenhum.
-Tens sim. E não porque me amas, eu sei, mas eu amo-te e sabe-te bem.
Beijo-a. Beijo-a apaixonadamente. Beijo-a com um abraço apertado. Fujo, fujo mesmo, para o meu lápis e digo.
-Meu amor, senta-te de pernas abertas.
Não respondeu.
-Faz isso senta-te de pernas abertas.
Olhou para baixo. Esperei. Havia algo de intenso que ela imanava, olhou para mim a chorar. Sentou-se, de forma desajeitada, de pernas abertas. Não balbuciava, tinha apenas a cara molhada, o rímel arrastado. Desenhei-a, desenhei-a com força intensidade. Olhei-a e com o olhar senti-lhe o pescoço, deslizei pelo corpo, pelos braços, pelos seios, pela pequena sombra que produzem, ondulada no corpo curvado, os bicos como pontas, o umbigo um pouco mais claro e depois os pelos e depois ela. Desenhei-lhe cada pelo, e desenhei a vagina enquanto vagina, enquanto clara, pessoa própria, mundo, cona. Fechada apontando para baixo, para cima, aberta, tapada pelos dedos, arrastada pelos dedos enquanto se tocava. Enquanto eu a tocava, ela se tocava, arrastava a pele, com um dedo sentia-se, não trincava o lábio, não fechava os olhos, olhava para mim, para os meus olhos, não piscava, eram mares de negro, de rímel arrastado. Era ela e depois veio-se.

domingo, 19 de julho de 2009

Tom traubert's Blues

A porta abriu-se e fechou-se com a entrada de um senhor gordo de bigode e chapéu.
-Hello Frank.
-Hello Jim. What's it gonna be today?
Jim sentou-se num banco de bar alto, apoiou os pés numa barra de metal dourada e encostou-se ao balcão com um braço gigantesco. Com o outro levantou o chapéu branco e coçou a testa, arrastou a mão até ao bigode que penteou com a palma. Estava vestido de fato, também branco, enrugado. Ouvia-se a sua respiração, profunda, danificada por tudo o que a poderia danificar e disse:
-Jack Daniels, no ice. Thanks Frank.
Frank, o barman, detia-se em frente a Jim secando com um pano copos lavados, enquanto o cliente observava os brilhos no amarelado do seu whisky , bebia-o e voltava à observação, como para encher o espaço temporal entre os tragos.
Vê-los juntos era uma paisagem surreal. Frank era magro de corpo, magro de cara. Assim as rugas aumentavam, parecendo assim ser mais velho do que era. Com um nariz grande e olhos pequenos, algo no conjunto apontava para a longa testa calva. De suspensórios e camisa verde observava o seu bar e a sua face não distinguia emoções, mas um certo orgulho, uma identificação com o espaço semelhante à de um pai para com um filho, uma identificação de
-He looks just like his daddy.
estava implícita.
De luz vaga e ocasional, era um local pequeno e escuro que não atraía clientes, apenas aqueles que se atraíam por sítios sem clientes. E era essa a clientela que ele preferia. Por enquanto esta era constituida por Jim, à sua frente, um grupo de turistas portugueses numa das mesas do fundo, atraídos pelo aspecto que achavam típico. E depois havia Tom. Tom Traubert, o pianista. Era um rapaz calado, bebia muito e escrevia canções, levava um papel e lápis.
Com o cabelo puxado para trás, chegava sempre de fato. Andava curvado e dentro de uma figura pouco imponente estava alguém que não se podia evitar olhar. Havia algo de misterioso nele.
Tom enfiou a mão no bolso e tirou um cigarro e um isqueiro.
-Can't smoke here Tom, you know that.
Acendeu o cigarro e a face dele ficou iluminada por uma luz quente, amarela. Tinhas sobrancelhas carregadas, uma boca fina e larga e um queixo proeminente, naturalmente ou derivado da barba.
-C'mon Frank, it's cold out there.
-Rules are rules. I'm Sorry.
-Fine.
Tom pôs o casaco por cima do ombro direito e o chapéu na cabeça e saiu.

Lá fora, de braços enfiados nos bolsos, a noite era a noite. Fria, húmida. O passeio reluzia com os painéis luminosos dos bares e das lojas ainda abertas. O cigarro aquecia-o, aquele pequeno lume, mas não conseguia ser invadido pelo frio, pelo frio como noite, pela noite como memórias. Tom tinha muitas memórias dolorosas. Dolorosas para ele, mas não as contava a ninguém, receava que lhes retirassem o significado. E aquelas memórias eram tudo para ele. As saudades de Mathilda, a vontade de ir embora. Depois de ela se ter ido, copenhaggen perdeu o sentido. Fez a mala de cabedal velho e começou a viajar, a fugir. A fugir de Mathilda.
Atirou o cigarro quase terminado para o chão e pisou-o. Endireitou-se e olhou a noite, como quem observa algo que não está lá. Ou como se fosse a única pessoa a conseguir ver realmente. Um dos dois.
Viu no bar os turistas a pedir a Frank conselhos, a questionarem-no por cervejas da zona. Ele, sabendo as respostas, não estava habituado. Estava habituado aos seus clientes, estava habituado aos seus hábitos e assim, encolhia-se. Tom Sorriu e entrou na porta que abriu e fechou-se.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Música para sair de um filme

Acorda.
Acorda.
Acorda.
Não consigo ouvir mais isto. Acordamos os dois, hoje.
Levantas-te. Agarras uma mala grande verde e abres o armário como se janelas fossem. Conheço o teu corpo tão bem. Os teus braços abertos, Júlia, são um convite. Para mais fundo. E só eu sei isso.
Conheço os teu lábios suaves. As costas nuas que vejo entre as portas que abres, lembro-me de beijá-las. Saio dos teus lábios, beijo-te as costas e sinto saudades dos teus lábios. E se volto para eles, saudades das tuas costas. É o que me fazes, esta raiva de desejo. E então abraço-te. Tento incluir-te toda. Sinto-te as costas.
Desço.
Chego às tuas ancas e subo.
Passo os teus seios e toco-te os lábios e és suave.
Toda tu.

Acordada agora. Eu sentado, vejo-te preencher a mala de vestidos. Saias. T-shirts tops e coisas. Depois tiras, à pressa. Percebes que não tens mais espaço mas precisas para livros e sapatos e a escova de dentes. Os tecidos dobrados com cuidado agora voam a sair da tua mala. e tu sais. entras na casa de banho e eu vejo o teu reflexo. Lembro-me de uma quinta feira. Como hoje.

A manhã tentava cair, como a noite faz. A noite cai facilmente. É isso que ela faz. À manhã é mais dificil. Mas se alguma vez o fez, foi nesta quinta feira. Eu dizia-te.
-Júlia.
-Sim amor?
-Eu gosto das tuas borbulhas.
-Estás a dizer que tenho borbulhas é?
-Concerteza, mas são pouquinhas, e eu gosto delas.
-Eu sei estava só a tentar fazer-te sentir mal.

Sorris.

-Eu sei. E eu estava a ignorar-te.

Ris-te. Eu agarro-te o nariz. Eu gosto de te fazer isso. Ficas com um ar atrapalhado.

-Mas gosto das tuas borbulhas, gosto muito. De uni-las como pontos.
-Isso é um sinal.
-E não posso unir?
-Não não. Sinais só com sinais.
-Ah, está bem.
Viras a cara, deitada, fechas os olhos. Passa o tempo e eu digo-te
-Acorda.
Digo
-Acorda.
e não sei porque não te deixo dormir. Continuo digo
-Acorda.
-Amor?
Saiste da casa de banho. Olhas para mim enquanto pões um brinco. O outro está posto. Enquadram a tua face.
-Estava a pensar alto.
-Despacha-te então. Temos pressa.
Visto-me rápido. Acabo e tu ainda estás a arrumar coisas, eu fiz a minha mala no dia anterior. Saio do quarto, agarro-te a mão. Olho-te nos olhos, tens medo. Eu também. Se calhar estou-me a ver a mim mesmo. Se calhar isso é estúpido. Se calhar ninguém vê nada nos olhos. Não sei. Tenho de acordar.
Dou a chave do quarto a um senhor de barba por fazer que lava o chão do corredor. Por entre papel de parede antigo e lâmpadas que imitam velas caminhamos, descemos escadas, viramos em esquinas. Tudo parece mais longo. À porta está um polícia que que põe a mão no vidro da porta à procura. E um senhor, o teu pai. Tu assustas-te. Escondes a cabeça no meu peito por segundos, susurro-te algo. Não sei o quê. Mas afastamo-nos.

Eles entram.
Nós corremos.
Escondemo-nos num quarto. Fecho a porta por dentro e oiço gente que bate.
-Júlia? Júlia estás aí? Abre a porta querida.
Eu respondo-lhe.
-Um dia vocês vão sufocar.
Ambos olhamos para a porta, de mão dadas.
-Um dia vocês vão sufocar.
e eu abraço-te digo-te que te amo. Passo-te a mão pelas costas até às ancas. Sobe pelos seios até aos lábios. Olhamos pela janela, ainda é alto. Eu tenho medo. Agora já não te consigo ver. Digo-te
-Julia.
-Romeu.
Saltamos. Terminas deitada na estrada. Eu a teu lado. Um carro pára. Pessoas aproximam-se. O teu corpo está torcido. Ossos quebrados e gostava de ainda te poder passar a mão pelo corpo. Digo-te
-Acorda.
-Acorda.
-Acorda.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Pretty Mary K

Mary K, bonita, passeia pela praia. Os seus cabelos encontram-se espalhados pelo vento. Espalhados entre o vento. E ela sorri. A saia é o verão, é o sol nela, aquele verde transparente com flores amarelas, o decote aberto que adivinha o bikini. E tudo é feliz.

Menti.

Mary K, bonita inevitavelmente, não passeia. Um barco velho de musgo onde a água costuma tocar, um azul que já foi e agora é outra coisa, é quase só madeira molhada. Uma luz intermitente imana da janela e Mary K, bonita, desce do barco para o pontão. Está noite, o luar brilha-lhe na cara. Na humidade do seu corpo que não passou pela água mas sim por outro homem. Um marinheiro sem barba, pescador de cabelos emaranhados. Talvez outro que eu não consiga ver daqui. Mas um, pelo menos, e Mary K, húmidos no luar. Bonita, recebe uma nota na meia de algodão. Ninguém é feliz. Eu não sou. E vejo-te, na escuridão. Tu no pontão, eu na baía. Vejo a tua cara, de cabelos que não esvoaçam e a tua cara não é verdade. Duvido dela.

Se fosse não estavas ali, entretendo marinheiros e talvez a ser entretida. Estavas ao pé de mim como dizias. A tua cara mentiu-me e eu não sei se isso é possível. Se calhar esqueceste-te.

Tu no pontão, eu na baía. Sigo-te com o meu olhar aguado. A lua está no mar e reflecte-se em ti e em mim e tu vês-me. Encontras-me, parado na praia.

Assustada, assustado, mentirosa, louco. Viciado. Viciado em ti.

Eu, um marinheiro sem cabelos desgrenhados e de barba por fazer. Vestido de azul, só porque sim, honesto. Um dia era eu num barco como aquele. Num luar em que a tua cara não era um reflexo ou eu não notava. A luz era minha e estavas húmida por mim. Era só eu contigo.

Cara de menina, os meus gemidos, mordes o lábio levemente, eu a amar-te, tu a seres paga para isso.

Talvez.

Tenho medo de pensar que sim. Mas nesse dia a nota que tinhas na meia era minha.

Olhas para mim. Acenas-me, sorris.
Passeio pela praia e a lua acompanha-me e tu és a lua, Pretty Mary K.