terça-feira, 20 de outubro de 2009

Something in the way

na bruma das luzes é nevoeiro, um nevoeiro de fumo de tabaco. Um nevoeiro de suor e música ao fundo. Guitarras de quem não se interessa, guitarras afogadas. Num baixo que de longe ainda se sente no chão de madeira.

E é o ambiente. Em torno de mim é o ambiente. E eu deitado, encostado numa parede com uns panfletos, vejo tremidos de luz. Um homem de cabelo e barbas longas, vestido com um colete branco está no chão imóvel enquanto que uma rapariga de cabelo roxo lhe beija os braços tatuados.

Desencosto-me, coço a cabeça nua e passo as mãos pelos olhos, em gestos desengonçados é o que ainda me sinto capaz. Passo pelos meus lábios secos, paro, suspiro.
É o negro da noite que te consome, nas luzes irrealistas que te atingem. Um vermelho, um roxo, algo confunde. O baixo que permanece e sentes-te falsificado, sentes que é tudo falsificado. A bateria que marca o tempo e palavras sólidas de infelicidade.

Não as do vocalista mas as minhas, as minhas palavras como:
-Ana.
Palavras sólidas de infelicidade, como uma amargura seca na voz, um entrave na garganta
-Sempre gostei de como dizes o meu nome.
-Hum.
-Não sejas assim.
Ela dá-me a mão para me levantar. Eu pauso e aceito.
-Porque estás aqui?
-Eu estou sempre aqui.
-Pois é.
-E tu lembravas-te. Sabes que sim. Sabes porque vieste.
-Não me chateies. Anda lá.
-Ok
Ponho as mãos nos bolsos. Ela tenta segurar-me com um braço mas eu afasto-me.
4 anos disto. Há dois anos que não vinha aqui. Há dois anos que tinha desistido. Ela não me leva mas eu sigo-a. As coisas mudaram um pouco desde a última vez. Já não oiço a guitarra, um pouco o baixo e cada vez menos mas ainda oiço a voz. As palavras sólidas de infelicidade. Entro num corredor que parece vazio. Mas ouvem-se vozes dos quartos onde vamos passando. Gritos. Eu tento não ouvir, tento não ligar. Tento não perceber que são os meus gritos. Na porta há um número.
-3.
-Sim, é este.
É pequeno. Lá dentro há só uma mesa e uma janela fechada com umas tábuas. Ela tira algo da mala. Um tubo com um líquido que põe numa seringa. A seringa reluz e não sei se do vidro se do que está lá contido. Ela injecta-se e treme. Oferece-me. Nos seus olhos há uma queda, uma insegurança que não havia anteriormente. Assusta-me, mas eu não aguento mais. Tomo o que resta.
-Agora tens de esperar um pouco.
-Não aguento.
-Ok. Vamos com calma então.
Afago-lhe os cabelos loiros, o pescoço. Ela estremunha, começa a sentir o efeito. Olha para baixo e depois para mim. Roubo-lhe cabelos penteados para o lado e deito-os sobre a cara. Chegam-lhe aos olhos e são como cortinas. Como cortinas transparentes e ela olha-me nos olhos e eu começo a sentir o efeito. Passo-lhe a mão pelas faces sem cuidado e empurro-a contra mim. Beijo-a com força e relato
-Puta. A tua boca salgada. A tua boca morta.
-Ela ama-te, a minha boca ama-te.
-A tua boca mata-me, a tua boca mata-me por dentro.
-E a tua faz-me esquecer. Faz-me esquecer-te.
-A tua também, essa é a morte.
E trinco-lhe o lábio inferior. Ela tira-me a t-shirt e eu só puxo a dela para cima. Como eu gosto de a sentir vestida, como quem sai da rua e me come. Como quem não aguenta. A ideia de que ela não aguenta.
Eu queria-me esquecer dela. O que ela faz é algo do género. Tira-me as calças, os boxers e a partir daí faz-me esquecer. Passam-me imagens na cabeça a cem kilómetros por hora. Histórias inventadas todas, porque entre nós não há histórias, só estas. Um vampirismo desumano de comer o outro. De, no fim, te alimentares. Um vampirismo, a excitação ampliada de um sentimento que te faz esquecer, de algum modo.
Ela come-me e eu chamo-lhe nomes e ela geme, ela geme só de o fazer. E retribuo com ela já morta, parece injusto. Mas não me interessa, é só a fome. O rosa entre as suas pernas que me faz fome.

sábado, 17 de outubro de 2009

Parallel Lines

Desligo as luzes.

Todas, quase todas. Apenas uma quente, que me permite ver-te. Encontro-te dentro de uma cassete, uma das velhas. Aquelas que vinham pequenas nas câmaras e tinha de se usar um adaptador.



Tinha uma etiqueta horizontal branca, escrita com esferográfica azul.

Verão 2003, África do sul.



No escuro passo a mão pela textura do pedacinho de papel e vejo a tua mão, na luz dos teus cabelos molhados, do teu sorriso suave de praia, e dos olhos castanhos que naquele sol tinham feixes amarelados.

-És uma chata a etiquetar os videos todos e a escrever as datas.

-Oh, depois mais tarde podemos querer ver. Daqui a uns anos vai ter imensa piada.

-Eu sempre me habituei a colidir com as minhas memórias. Inesperadamente. Sem planear.

-És é preguiçoso.

Dali encontrava a praia. Um areal limpo, solitário mas contigo. Encostado no meu carro e tu à minha frente. Arrumaste a câmara e preparavas-te, o teu ritual pós praia. Empurravas os cabelos molhados para dentro de um elástico. Sentavas-te no banco do carro com os pés bamboleando deste lado, no resto do mundo. Via-os amarelados do sol, num bronze bronzeado, com a areia e tu sacudia-la em gestos cuidadosos. Na sombra o resto de ti, dobrada tentando chegar aos pés e no dobrado via a tua marca do bikini deslizar. Via aquilo que tinhas escondido na praia, via o que só eu via. E tentei não parecer demasiado contente, mas tu percebeste e sorriste.

Vejo uma etiqueta horizontal branca, escrita com esferográfica azul. E vejo mais, bastante mais. No entanto parece que estou a observar as memórias mais intímas de outra pessoa. Como encontrar um papel que diz
"Tenho que ir, desculpa. Amar-te-ei sempre."
Não podes evitar sentir o que está escrito apesar de não saberes do que se trata. E quando me lembro de ti.

Em mar ao longe, nas tuas pernas com água salgada como suor, nos teus cabelos apanhados rudes. Selvagem.

Lembro-me de ti como palavras, descrições e motivos pictóricos com um fim. Com o fim de me lembrar de ti. Em memórias cuidadosamente etiquetadas e datadas.