sábado, 20 de setembro de 2008

a morte.

(é antigo, mas julgo que não tinha posto no ah ok, a minha antiga casa)

Eu não estava em sitio nenhum em especial. É uma pena, adorava ter estado, seria bem mais bonito. Menos prosaico, mais dramático, se fosse num jardim à noite e começasse a chover. Mas não foi. Foi num banco metálico num centro comercial. As pessoas passavam por mim. Lembro-me que pensei
-As pessoas não são assim tão bonitas.
Por pessoas entenda-se raparigas. Mulheres. Duas chinesas, uma com calções e rabo de cavalo e a outra não me lembro. Não eram bonitas. Nenhuma era. O que me espantou, mas não demasiado. Não estava com grande apetência para me espantar. Tinha a nossa morte nos meus ombros.
(por nossa entenda-se minha e tua.)
E é muita morte para ter nos ombros. Duas pessoas logo. E tu nem um pouco aguentas. Não te critico, eu sei que dizes
-Não tens de a carregar, deixa-a aí. Não vais precisar mais dela.
Mas não se trata de precisar. Não te sei explicar: há muitas coisas acerca de mim que não te sei explicar. Não as percebo. Antigamente percebias por ti mesma e era bom. Quando não percebias achavas engraçado. Também era bom.
Acho que se trata de me estar agarrada. Como um hábito, beber café à noite, mesmo que me tire o sono. Ou um tique, ranger os dentes quando durmo. Mas sobretudo, acho que é um vicio. Um vicio. Tu sabes o que é um vicio.

Sentado, a achar que as raparigas não são assim tão giras, pensei em ti.
-Porque eu não sou gira ou porque sou?
Não é isso. Primeiro porque tenho a nossa morte nos ombros e pesa e não me deixa esquecer-te. Isso é um motivo. Outro, talvez não um segundo mas uma causa do primeiro: pensei que podias estar ali ao lado. Subitamente. Dir-te-ia
-Tu não és feia.
Porque não te acharia feia. Há demasiadas coisas envolvidas na nossa morte, tornam-na muito complexa. Acho que é daí que vem este peso todo. Mas tu responderias:
-Obrigado?
Com cara de “isso não é um elogio”.
-É que estou a achar as raparigas todas feias. E tu não és.
Se estivessemos vivos sorririas e dirias algo mesmo mesmo teu. Teria sido bom. Mas essa resposta nem me passou pela cabeça. A morte tira um pouco a esperança. Não toda, mas um pouco. Porque tudo pode mudar outra vez. Não me parece que mude. Parece-me que responderias algo referindo o facto de eu ser todo “artistico” e as raparigas ali à volta serem não muito giras. Ou outra coisa parecida. Não faz mal. São coisas que acontecem, as pessoas morrem. Só queria que me ajudasses com este peso, que já me cansa a coluna.

1 comentário:

Aquela por trás disse...

adorei! mesmo... já tava com algumas saudades de ler as tuas coisas... mas este foi sem duvida dos que gostei mais..
acho q me revivi um bocado ainda por cima..ja carreguei duas mortes tambem...
bom trabalho si si si *