domingo, 10 de janeiro de 2010

Tryptych of Henrietta Moraes - sobre Kundera

Isto é verdade. Desta vez é.

Oiço a água do autoclismo a correr, baça, ao longe.
O apartamento não é meu, parece vazio. Uma caixa castanha, fita cola larga rasgada, como se alguém se tivesse mudado para aqui recentemente. O frio que está, que sinto, congela a sala. Entrenha-a na sua ausência, na luz focada de um pequeno candeeiro e na luz geral de uma cidade nocturna que a envolve. A escuridão parecem quatro paredes, a isolação de um outro mundo. E eu bebo o meu café com leite, descansado, por contraposto inevitável a ela.
-Desculpa estar sempre a ir à casa de banho. Tenho estado assim desde que a polícia me chamou.
-Desculpa eu. Querias-me dizer algo?
-Sim. Preciso de te dizer o que lhes disse. Só para que os factos confiram.
-Claro, obrigado. Senta-te, acalma-te Cristina.
-Não consigo.

Conheço-a há alguns anos, é uma rapariga impecável. Veste-se sempre exemplarmente, deixando passar o menos possível da sua nudez. Agindo assim também.

Agora Cristina estava nua. Não de pele mas de sentimento. De olhos desamparados, na sua sensibilidade exposta. De cabelos despenteados, de faces corrompidas. E assim, algo me intrigava. Senti a urgência de a violar. Não de fazer amor com ela, mas de a violar: como uma forma de a descobrir. Havia algo nela que me atraía, um essência indelineável. Uma pérola interior e apetecia-me abri-la para a encontrar. Entre as complexas oposições entre a sua postura e a sua destruição, a sua elegância e o horror. Queria vê-la exposta. Acabei por compreender a falta de sentido deste meu instinto, na sua face o desespero trouxe-me exponencialmente um sentimento de ridículo.

-Cristina, não te preocupes. Contas-me depois, não há de ser nada.
-Espero que não.
-Não será. Deixa-me trazer-te um chá, pode ser?
-Sim, agradeço-te, obrigado.

Fiz-lhe o chá.
Na sua perda, Cristina quis fazer amor comigo e eu fiz amor com ela. Ela gemeu o meu nome baixinho, eu gemi
-Cristina.
olhei-lhe nos olhos
-Cristina.
e no final foi ela quem me violou.

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